Under Pressure…

Percival não aguentou a pressão, explodiu. Deixou fluir pelas cordas vocais, na forma de um brado bárbaro, todas as palavras reprimidas pelos mecanismos ponderadores do cérebro. Pensava demais e por demais pensar, continha a fala. E fala contida na cachola é como água na panela de pressão. Sem uma válvula de escape, explode. E Percival explodiu. Cansou das piadas pseudo intelectuais do Malvino. Cansou dos mexericos depreciativos da Armênia. Cansou do sádico despotismo do Junqueira. Cansou do desprezo, do descaso, do escárnio. Cansou-se de si, pôs-se para fora com a fúria incontida de uma ressaca marítima. Faltando cinquenta e dois minutos para o fim do expediente, Percival despiu-se de suas desculpas, de suas roupas, de seus medos. Nu, percorreu os corredores sob olhares espantados, risinhos e sussurros. Diante da sala de reuniões, deu as costas aos curiosos e defecou no carpete. Voltando-se para a multidão estarrecida, recolheu suas fezes com as mãos e as elevou às alturas, como um sacerdote em ato de oferenda, murmurou palavras que Creyton, o office-boy, jura ter ouvido: caguei para vocês. De braços abertos, como um artista que se prepara para o seu gran finale, lançou suas fezes aos quatro cantos do escritório. Faltando sete minutos para o fim do expediente, diante da movimentada avenida e enrolado na toalha que adornava a mesa do café, Percival chamou um taxi. Pra onde, chefia? Para Pasárgada, mas sem pressa…

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Sala de Espera…

Sete horas e vinte e seis minutos de uma manhã de qualquer-feira. Trinta e dois. Trinta e dois. Entre os dedos do jovem de chinelos, um pedaço de papel amarrotado. É o meu, moça? Ainda não. O semblante cansado do senhor de camisa azul contrasta com a energia do menino de short vermelho que rasteja por entre os bancos. Trinta e seis. Trinta e seis. Quatro beatas fazem roda na antessala. Nada lhes escapa. Onde já se viu, deixar criança solta assim. E aquela, aposto que está grávida. De novo, completa a companheira. Trinta e nove. Trinta e nove. O enfermeiro de olhos castanhos chama alguém. Ambos discutem. O enfermeiro leva as mãos à cabeça, gira sobre o próprio calcanhar. A palavra lhe para no meio do caminho, algo entre a laringe e os dentes. Um sopro de ódio lhe escapa. Quarenta e um. Quarenta e um. A senhora de óculos bifocais me pergunta onde se pega a senha. Aponto para o lado. Pega para vovó, diz ela para a adolescente que a acompanha. A menina da tranças serpenteia por entre as gentes, cruza com o menino de shot vermelho e retorna com o papel. Setenta e sete, ela me mostra. O seu é qual? Nenhum, eu digo. É que nessa história sou apenas o narrador. A minha frente, outra senhora, a senhora de cabelos brancos. Aproveito o momento para me retirar da trama, cedo meu lugar a senhora de cabelos brancos que de pronto compara sua senha com a senhora de óculos bifocais. Quarenta e três. Quarenta e três. Movo-me para o canto, próximo à coluna. O ventilador range mais que venta. Sob ele, duas garotas conversam animadas. A de brincos de pena mostra a de batom vermelho as fotos do fim de semana. Dois médicos atravessam o saguão. Um deles ajoelha-se para mexer com o menino de shot vermelho. Parecem conhecidos. O outro observa o ventilador. Seu olhar cruza com o do senhor de camisa azul. Há entre eles uma sutil comunicação. Cinquenta. Cinquenta. Meus olhos repousam sobre os rostos de cada uma daquelas pessoas. Tento guardar detalhes. Imagino suas vidas. Me perco em possibilidades de os descrever, de como tramá-los nos meus textos. Absorto, cansado pela espera, meneio a cabeça, como quem busca relaxar a musculatura do pescoço. Num lance, vejo-a colada ao teto. Sua mortalha negra, sua foice polida. Seu rosto se perde na escuridão, mas eu sei que ela sorri. Cinquenta e seis. Cinquenta e seis. Vamos! A voz de minha companheira me tira da hipnose. Demorei muito? Não, não. E antes que engatássemos a conversa sobre como fora a consulta, espreguicei-me como desculpa para olhar mais uma vez para o teto. Lá estava ela. Esteve ali o tempo todo, como eu, observando. Esperando…

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Grilo…

Sua constituição física não ultrapassava os um metro e cinquenta centímetros e quarenta e sete quilos e meio. A tênue camada de fibras musculares eram-lhe suficientes para cobrir-lhe os ossos. Quando criança, recebera o apelido de louva-deus. Mais tarde, já no chão de fábrica, chamavam-no chassi de grilo. Para os íntimos, apenas Grilo. Sua história é a historia de qualquer um de nós. Nascido José de Queiroz, Grilo foi mais um lançado neste mundo sem o manual de instruções. Logo cedo, sua avó quis mostrar-lhe o caminho para o céu. Devota, Ludismara, Dona Mara entre os irmãos de fé, carregava Grilo para os cultos. Ainda meninote, Grilo percebeu que sua vinda ao mundo, além de desprovida do manual de instruções, se deu desprovida de fé. No culto, o blábláblá do reverendo era um relés ruído de fundo. Grilo tinha sua atenção voltada às luzes cintilantes da cidade, aquelas que se podiam ver por uma das frestas do imenso vitral da igreja. Apesar dos protestos de Dona Mara, durante a adolescência Grilo trocou a igreja pelo bar. Seus pais, pouca atenção davam ao pequeno Grilo — a eles daremos pouca atenção também. Pequeno tanto em proporções físicas como no gosto popular. No alto dos seus 25 anos, Grilo era apenas uma sombra. Pouca sombra, como gozavam os amigos da escola técnica. Viva por entre bêbados e vagabundos desde os treze anos. Servia-lhes de office boy, indo e vindo com recados e pequenos favores. Bebericava as doses de pinga, rabos de galo e outras misturas típicas dos balcões encardidos e mal servidos pelos Seus Raimundos da vida. Quando algum anônimo mais abastado resolvia, tomado pela generosidade que somente uma quantidade de álcool no sangue é capaz de prover, pagar uma rodada para a trupe de boêmios, Grilo, valendo-se de sua ágil pequenez, era o primeiro a receber uma dose de Old Eight. Comia o que restava nas panelas da casa. Dormia num colchão, num canto, num pequeno quarto que dividia com seu moribundo avô e duas galinhas d’Angola, mimos de Dona Mara — apenas as galinhas, que fique claro. Na fábrica, por benevolência do Senhor Aparecido, conseguiu o posto de auxiliar de almoxarife. Das oito às dezoito ajudava Rubens da Mata, o Rubão, com as prateleiras lotadas de peças. Rápido como um camundongo flagrado pelo acendimento de uma luz qualquer, Grilo subia e descia as escadas corrediças catalogando, organizando e despachando todos os pedidos que Rubão ordenava de sua confortável cadeira de supervisor. No fim do dia, Grilo afogava seu cansaço em opacos copos de cerveja barata. Sem saber como nem porque, sem se dar conta dos dias e noites, Grilo seguia existindo, sem o manual de instruções. Nos fins de semana, quando o salário permitia, Grilo se dava ao luxo de um passeio pela cidade. Anônimo, Grilo se metia em meio às luzes que contemplava quando meninote. A avenida central, repleta de bares de balcões limpos e atendentes sorridentes, cheios de gente bonita, gente que bebia misturas coloridas com frutas e pequenos guarda-chuvas, gente que bebia cerveja cara em copos translúcidos. Anônimo, Grilo encostava sua carcaça num poste, acendia um cigarro e, por algumas horas, misturava-se às sombras. Seus olhos miravam um mundo que não era o seu. Um mundo cujo o blábláblá do reverendo denunciava como o fins dos dias. Um mundo no qual as pessoas pareciam saber exatamente o que fazer. Pobre Grilo, mal sabe que aqueles drinks coloridos com frutas e guarda-chuvas não passavam de cervejas baratas em balcões encardidos, placebos. Todos, sem exceção, jogados no mundo sem o manual de instruções. Na volta, caminhando sob a brisa fresca da madrugada, Grilo deixava escapar uma lágrima. Já enrolado nos trapos que fazia de coberta, antes de entregar-se ao sono, como em todas as noites, Grilo voltava-se para o seu moribundo avô com um pergunta na mente. Uma pergunta nunca feita em voz alta. A vida é isso mesmo? A vida é isso mesmo, disse Dona Mara quando acordou Grilo. O corpo do avô já não estava lá. Nem a cama, para dar mais espaço para as d’Angola. A vida é isso mesmo.

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Tobias…

Tobias olhou para os dois lados do galpão. Primeiro o esquerdo, depois o direito. Certificou-se que nenhuma alma testemunharia sua covardia.

Há tempos Tobias era o saco de pancadas da firma. Todos, sem exceção, zombavam dele. Uns descaradamente, outros, pelas costas, nas conversas ao redor da mesa do café. Até mesmo dona Judith, a copeira, aquela doce senhorinha que, de hora em hora, renovava o café nas garrafas térmicas. Café que aromatizava o escárnio sobre Tobias. Justo ela, agora, puxava o corredor polonês das palavras. Palavras baixas, palavras que vertiam fel. Dona Judith, pensou Tobias. Seria ela, ou melhor, através dela, que Tobias se vingaria. Sim, seria o café o veículo da sua vingança. Café que ele, Tobias, sequer gostava. Nunca fora dado aos fetiches do café. Nunca compreendeu direito as aglomerações e conversinhas em torno do café. Embora nunca tenha sido chamado a bebê-lo com os demais, achava-o ruim. Certa vez, sem que ninguém o visse, bebericou uma ou duas gotas. Foi o suficiente para que o asco lhe tomasse. O café lhe enjoava. Não o de dona Judith, mas qualquer café. Talvez por isso, pelo desprezo ao café, tenha sido justamente o café o seu eleito. Escrutinou a memória em busca do horário de maior movimento no canto do café. O canto asqueroso onde pessoas asquerosas diziam: Até quando vamos aturar o Tobias? Vejam, lá vem o Tobias, credo. Sai daqui, Tobias, ninguém te quer. Jurandir, o porteiro, todos os dias esperava, de tocaia, a chegada de Tobias. Tão logo Tobias lhe dava às costas, cuspia-lhe. Não um cuspe qualquer, mas daqueles, catarrentos, cuja a viscosidade impregnava a quem lhe fosse alvo. E o alvo era sempre Tobias. Às vezes errava, às vezes acertava. E em ambos os casos, Tobias seguia em silêncio, escravo de sua condição. Quando o dono da firma estava por perto, todos se faziam de bons-moços, uns até verbalizavam, hipócritas, uma saudação ao Tobias na frente de Seu Cróvis. Sim, Cróvis, com érre mesmo. Na certa, um erro de registro. Seu Cróvis nascera na roça, em tempos outros. Mas, calma lá, a história é sobre o Tobias! E Tobias tinha a afeição de seu Cróvis. Era o único que se achegava no canto de Tobias, estrategicamente colocado o mais distante possível da mesa do café. Mas seu Cróvis, depois de percorrer o galpão, recolhia-se em seu escritório a contabilizar a empresa. Tobias, longe de seu protetor, voltava a ser alvo dos olhares maldosos, das palavras virulentas. O café! Tobias arquitetava seu plano há dias. O melhor horário: após o almoço. Ao meio-dia todos se ausentavam para comer no restaurante próximo. Todos, menos dona Judith, que almoçava ás treze horas. Havia uma pequena janela de tempo, cinco minutos talvez. Era o tempo entre dona Judith deixar o café pós-almoço coando na cozinha e ir buscar as garrafas térmicas da mesa do café. A maioria, logo após a volta do almoço, já rondava o canto do café. A porta da cozinha não se via de lá. Tobias teria exatos cinco minutos para sair do seu canto sem ser percebido, adentrar na cozinha e realizar sua vendetta.

Tobias olhou para os dois lados do galpão. Primeiro o esquerdo, depois o direito. Certificou-se que nenhuma alma testemunharia sua covardia. Caminhou sereno até uma pilha de caixas e esperou dona Judith sair da cozinha em busca da garrafa térmica. Fora do campo de visão de todos, Tobias entrou pela porta, saltou sobre a mesa, saltou para a pia e, diante do coador de pano que vertia o negro líquido para um canecão, ergueu a pata traseira e, com uma feição quase humana, com um sorriso de Monalisa, diriam, deixou verter sua urina, a que ele segurava desde a manhã, para dentro do coador. Contou mentalmente os minutos e, ainda que lhe restassem mais alguns mililitros no canal urinário, saltou da pia direto ao chão. Esgueirou-se pela porta e, novamente oculto pela pilha de caixas, passou despercebido por dona Judith, que cantarolava uma antiga canção enquanto trazia as garrafas térmicas vazias. Seguindo o ritual de sempre, dona Judith encheu ambas as garrafas, em uma delas, antes, adicionou as habituais colheradas de açúcar, afinal, era preciso agradar ambos os públicos, os da doçura e os da amargura. Garrafas cheias, voltou à mesa do café, saboreá-lo com os demais colegas.

Tobias ainda era filhote quando seu Cróvis o resgatou. Fora vítima da crueldade de um bando de adolescentes. Haviam queimado-o com plástico derretido, dado-lhe algumas pancadas com galhos de árvore e largado-o à beira da morte numa beira de estrada. Perdera mais da metade dos pelos, tinha uma orelha partida ao meio e faltava-lhe um olho. Seu Cróvis deu-lhe os cuidados necessários e um canto para ficar. E, do seu canto, agora, Tobias via seus algozes maldizendo o café de dona Judith. Mas que porcaria é essa? Experimenta isso, sua velha louca. O quê você colocou aqui? Em poucos minutos, dona Judith, a doce senhorinha que, de hora em hora, renovava o café nas garrafas térmicas, sentiu na pele a maledicência que somente o bicho humano é capaz. Tobias acompanhou-a com os olhos até a cozinha. Ouviu-a chorar e lamentar, entre suspiros, que aquilo, a forma como fora tratada, não se fazia nem com um cachorro. Nem com um cachorro! Seu Cróvis, que descia para o café, foi alertado. Estava um lixo, tinha gosto de urina, disseram-lhe. À caminho da cozinha, pronto a confortar dona Judith, seu Cróvis percebeu que Tobias não estava mais em seu canto. Chamou-o uma vez. Duas vezes. Três vezes. Nada. Tobias, livre de sua covardia, havia ganhado o mundo, embora ainda estivesse a apenas dois quarteirões do galpão.

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