Seu nome era Cássio, ou Tássio. Tarso talvez, eu não me recordo bem. Já tive tantos alunos, tantos nomes diferentes. Acho que era Cauê, ou Cauã. Difícil saber, não tenho registros documentais desse momento. Pois bem, ele teria os seus doze ou treze anos quando sua mãe me ligou em resposta a um anúncio nos classificados do jornal. Aulas de informática? Sim. Particulares? Sim. E o que se aprende nessas aulas? MS-DOS, Wordstar, Lotus 123 e programação em Basic e Pascal, senhora. Do outro lado da linha, um silêncio. Aquele amontoado de palavras parecia conversa de iniciados em alguma sociedade secreta. Quantas vezes por semana? Duas. Qual o valor? A mensalidade é de 50 URVs – eram os anos de transição, mais um pacote econômico, os cruzados novos ficavam antigos e davam lugar às Unidades Reais de Valor, predecessora do Real. O que ele vai aprender mesmo? MS-DOS, Wordstar, Lotus 123 e programação em Quick Basic e Turbo Pascal – acrescentei duas palavras novas para ser mais enigmático ainda. Três dias depois, em horário combinado, o menino apareceu. Para ser mais preciso, o menino cujo o nome me foge, chegou com o motorista particular. Desceu, entrou no pequeno cômodo que abrigava dois IBM-PC, um PC-AT 386, um MSX 2.0 todo hackeado e um Commodore Amiga 500 ligado a um monitor VGA saído de um filme de terror. Estendi a mão para cumprimentá-lo, ele estendeu-me o cheque, a primeira mensalidade, 50 URVs convertidas ao valor do dia. As aulas seguiram-se por alguns meses e, para a minha alegria, os cheques também. Eram tempos curiosos, eu tinha dezoito anos, cinco anos a mais que o pequeno sem nome, mas o tempo voava. Vencemos o DOS, o Wordstar, o Lotus 123 e caímos no admirável mundo novo das linhas de código, as variáveis, laços de repetição. O primeiro programa foi um jogo de forca. O enforcado era um conjunto de caracteres. Se o jogador errasse a palavra, a cabeça, que era uma letra o maiúscula, se transformava num asterisco. O garoto levava jeito para a coisa. Certa vez ele me disse, você pode ir lá em casa? Seu pai havia comprado um computador novo, perguntou se eu poderia ir lá, instalar. Embora o menino pudesse fazer isso sozinho, acredito que o pai não acreditava que o seu moleque de treze anos pudesse realmente fazê-lo, tantas URVs investidas em tantos meses e a pouca idade ainda pesava contra. Talvez fosse receio de que um cabo ligado errado resultasse em prejuízo, computadores nessa época eram muito caros se comparados com os de hoje em dia. Viviam em um luxuoso apartamento no centro da cidade. O pai era médico. A mãe eu não sei o que fazia, arquiteta talvez, mas eu nunca soube. O motorista foi me buscar em casa, me senti um lorde. O senhor usava quepe. As únicas pessoas que usavam quepes que eu conhecia eram policiais, como o meu pai. Fui recebido como um mago, o guru dos computadores. O pai foi extremamente gentil, mesmo quando soube que eu tinha dezoito anos e que estava terminando o ensino médio. Nerds, ouvi a mãe dizer em voz baixa para o marido. Desempacotamos o computador. Monitor, CPU, cabos, teclado, mouse. Deixei tudo sobre a mesa e, sob o olhar atento do pai e da mãe, disse ao garoto, quer montar você? Os olhos dele brilharam! Sempre me dirigindo um olhar de confirmação antes de conectar cada coisa, o menino ligou todos os componentes e em poucos segundos o cursor da linha de comando do MS-DOS piscava na tela do monitor VGA, infinitamente melhor que o meu. Juntos, instalamos todos os programas que ele aprendeu a usar no curso. A mãe sorria feliz de ver que as URVs tinham sido bem empregadas. O pai, tenho certeza, pensava o óbvio, quem montou o computador foi o filho, mas eu ainda assim cobraria pelo apoio espiritual. Antes de me despedir e receber o último cheque, agora acrescido da visita técnica, a mãe, educadíssima, me perguntou, fica para jantar? Eram quase 18h e eu ainda seguiria para a escola, terminar meu ensino médio. Jantar? Claro! Amigo leitor, amiga leitora, nem tudo nessa vida são flores. Sentamo-nos todos à mesa. O pai me serviu um copo de suco de maracujá. Natural! Nada de suquinhos em pó. A mãe apareceu com uma grande bandeja, berinjelas à parmigiana. BERINJELAS. BE-RIN-JE-LAS. Ciente de que teria de manter a pose e não fazer feio na frente de gente tão gentil, mirei na menorzinha, afinal, dos males, o menor. Falhei, a maior berinjela me foi imposta, eu era visita. Eu não gosto de berinjela. Gosto de queijo, gosto de molho de tomate, mas aquela mastodôntica berinjela era um nó górdio. Contrariando a minha visão de mundo, todos naquela casa não apenas gostavam de berinjelas, eles adoravam. A primeira garfada foi cruel. Meio copo de suco para fazer descer a leguminosa maldita. Puxei o queijo de lado, deixá-lo-ia para o final, para tirar da boca o gosto berinjélico. A segunda garfada fez secar o que restava do suco. Mais um copo, Edgar. S’il vous plaît, Mademoiselle. E assim, de meio copo em meio copo de suco, a berinjela foi toda para o bucho. O queijo do final não ajudou, estava impregnado de berinjela. Um gole final de suco, dei a desculpa que eu teria prova e não poderia me atrasar. Despedi-me imensa e felizmente agradecido pelo delicioso jantar. O motorista foi cortesia apenas para a ida. No meio do caminho comprei uma água tônica e fui fazendo gargarejos até chegar na OSE. Vendo meu semblante de poucos amigos, Moura, o bedel, perguntou, e essa cara de quem comeu e não gostou? Sentei-me no degrau da escada ao lado da sua mesinha e contei a minha epopeia berinjélica. Até hoje posso ouvir as risadas do Moura…
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Colônia de Férias
Colônia de férias. Peruíbe. Passávamos o Natal e o Ano Novo na colônia de férias. Mamãe passava o ano inteiro na cola da moça do sindicato para conseguir dez dias de paz e sossego à beira mar. Pensão completa. Café-da-manhã, almoço e janta. E no natal, ceia. No ano novo também. E uma lata de um quilo de goiabada, mas essa era meu pai quem levava. A colônia de férias era um território de ninguém para a molecada. Gente de todos os lugares. Gente de São Paulo, gente de Ribeirão Preto, gente de Pindamonhangaba, gente de Bauru e gente de Sorocaba. Eu, o leite-quente. Poucas horas depois de desfazer as malas, após longas horas de estrada espremidos num Fusca, nos primeiros diálogos com outras gentes, lá na sala de jogos, o apelido leite-quente vinha com vigor. Fala leite quente. LeitE quentE. O ê acentuado, com circunflexo, característico da herança tropeira, era diversão e chacota nos ouvidos paulistas acostumados com o leiti quenti. Chacota que era revidada com traquinagens que deixariam o Pedro Malasarte no chinelo. Pela manhã, café-da-manhã até o pandú fazer bico. Durante o dia, praia. Pausa para o almoço, um breve cochilo e, praia de novo. À tardinha, como dizemos em Sorocaba, banho e janta. À noite, sala de jogos. Pingue-pongue. Bilhar. Rouba-montes. Traquinagens. Na surdina, enterramos a botina de um moleque da capital no playground. Um pé só, o direito. Deu de chover a noite toda. Na manhã seguinte, descobertos, desenterramos a botina. Encharcada. Nem sempre as artes dos Malasartes ficavam no anonimato. Éramos crianças e a internet ainda não havia sido inventada. Na antevéspera do natal, enquanto eu tomava uma minha fumegante xícara de café com leite e deliciosas fatias de filão com manteiga e mel, Pompeu desembarcava do Del Rey zero quilometro. Do porta malas espaçoso, dezenas de malas e pacotes de presentes. Um deles, por razões óbvias sem papel de embrulho, uma bicicleta importada. Com amortecedores. Veja bem, hoje em dia isso é carne de vaca, mas nos idos de 1985, bicicleta com amortecedor era pura ostentação. Pompeu trajava meias de seda, mocassim, bermudas de sarja, camiseta polo e um pulôver sobre os ombros. Praticamente um cosplay anacrônico do João Dória. Tudo naquela visão destoava das minhas havaianas gastas, sunga do Incrível Hulk e camiseta regata. Pompeu sumiu pelas escadas, seguido pelos pais e pela irmã. Desnecessário dizer que os pais de Pompeu pareciam saídos de um filme hollywoodiano dos anos 40. A irmã era exatamente igual ao Pompeu, inclusive no buço salpicado de pelos, mas de vestido. Não os tivesse visto juntos, diria que Pompeu e a irmã eram a mesma criança inovando no cross-dressing. O dia seguiu na normalidade. Praia, almoço, soneca, praia, banho e janta. Pompeu, de calção de banho e bóia inflável colorida, apareceu após o almoço, no turno praiano da tarde. A gente levava uma câmara de pneu caminhão Fenemê como boia. Pompeu, para refrescar-se, bebia refrigerantes em lata. A gente levava um garrafão térmico de cinco litros com Q-Suco de uva. Meu dias em Peruíbe eram um episódio do Chaves em Acapulco, antes mesmo de Chaves fazer sucesso. A mãe de Pompeu, dona Pompéia no imaginário da molecada, usava um maiô metálico, óculos de sol maiores que os para-brisas do Fenemê de onde tinha vindo a nossa bóia e um chapéu de dondoca. Fumava cigarros chiques com aquelas piteiras que a gente via em algum episódio do Pica-Pau, quando se vestia de mulher. O pai, Pompeuzão, era o próprio Clark Gable de ceroulas de corte italiano e lenço de seda amarrado no pescoço. Na véspera de natal, durante o café-da-manhã, Pompeu estreou o seu presente, a bicicleta importada com amortecedores. Subiu nela, deu duas pedaladas e passou por todos com seus ar aristocrata, pedalou com mais intensidade em direção a uma elevação do gramado e… bum! A roda dianteira foi para um lado e Pompeu, impulsionado pelos amortecedores, voou para o outro. Caiu de boca nos ladrilhos de concreto. Estatelou-se. A mãe teve uma síncope. O pai gesticulava freneticamente, ora olhando para a bicicleta retorcida, ora olhando para Pompeu semi-banguela. A irmã ria. Ria copiosamente. As pessoas ao redor da cena, segurando seus apetrechos praianos, desviavam do pequeno e todo esfolado Pompeu. Alguém pisou em algo e exclamou. Era um pedaço de dente. Dente do Pompeu. Naquele mesmo dia, à tardinha, o Del Rey zero quilometro deixou o estacionamento da colônia. Perderam a ceia. A noite, na sala de jogos, empanturrados de chester panetone, alguém perguntou, e o Pompeu? Silêncio. Todos sabiam que Pompeu fora vítima de uma sabotagem. Alguém havia afrouxado as porcas que prendiam a roda dianteira da bicicleta importada com amortecedores. Alguém. Quem? Do canto da sala, calçando uma botina estrupiada no pé direito, alguém disse: leite-quente.
Neno…
Neno era o nome do moleque chato que vivia na casa ao lado. Nome não, apelido. De fato, eu nunca soube o seu nome. Neno. Pirralho de cabelos desalinhados, roupas mal cuidadas e dentes manchados de cárie. Neno vivia correndo pelas calçadas com alguma bugiganga que coletava nos ferros-velhos do bairro. Nessa época éramos todos, de algum modo, moleques chatos. Estávamos nas férias escolares e nos juntávamos na praça para brincar e brigar. É que a brincadeira, nessa fase, sempre vira briga, ainda mais quando o Neno estava por perto. Havia quem quisesse socar a cara dele apenas e tão somente pelos eu olhar insolente. Certa vez, a mãe do Neno nos chamou para jantar na casa deles. De fato, eu nunca soube se aquela mulher de traços duros era realmente a mãe do Neno. Eles moravam nos fundos da quitanda do Paulo. Paulo trazia muambas do Paraguai e as vendia em meio às frutas e hortaliças. Paulo era o nipônico mais brasileiro que eu já conheci, mas isso fica para uma outra crônica. A casa do Neno era uma casa pobre. Móveis rebentados, paredes descascadas. Sentada no canto do sofá, Emília. Irmã do Neno. De fato, se ela era ou não irmã do Neno, eu nunca soube. Emília, apesar de muito jovem, parecia já ter vivido muitas vidas. Tinha sardas que se espalhavam sobre o nariz e as maçãs do rosto. Tinha os dente igualmente manchados de cáries, como os do Neno. Tinha, também, marcas roxas nos braços. Ali, sentada no canto do sofá, vestida com uma camiseta de campanha política vários números acima do seu e com uma almofada sobre as coxas, Emília corou ao me ver entrar na modesta casa. Sua mãe lhe disse, Emília, levanta e cumprimenta o amigo do Neno. Neno riu, nem de longe éramos amigos. Emília delicadamente meneou a cabeça enquanto sussurrava para a mãe, não posso, estou só de calcinha. Eu apenas acenei a ela com a mão, ela apenas me sorriu um meio sorriso. A mãe entregou à Emília um prato cheio de comida. Vocês dois pegam a comida no fogão, disse-nos enquanto sumia no corredor que levava a um outro comodo. Neno foi primeiro, encheu o prato, sentou em frente ao antigo televisor, numa banqueta de madeira, e desligou-se do mundo. Coloquei duas colheres de arroz e uma outra de algo que até hoje não sei dizer o que era. De fato, era carne, mas só deus saberia de quê. Sentei-me no sofá, na ponta oposta à Emília. Na TV, um desenho animado qualquer. Neno devorava sua janta sem tirar os olhos do aparelho. Eu, de cabeça baixa, remexia a comida no prato sem de fato comer. Emília comia com calma, deixando na borda do prato alguns pequenos pedaços de cebola. A mãe voltou do comodo, havia mudado de roupas. Trabalhava no terceiro turno de alguma fábrica fábrica. Saiu dizendo que havia sagu na geladeira. Neno não tirava os olhos do desenho animado. Emília deixou seu prato sobre o braço do sofá e, num salto quase ornamental, passou do sofá ao corredor que dava para o outro comodo. De dentro do comodo, Emília gritou, Neno, dá sagu pro seu amigo. Neno olhou para mim, olhou para a geladeira, tornou a olhar para mim e retornou ao seu hipnótico desenho animado. Levantei-me e fui ver a cara do sagu. Parecia bom. Voltava para a sala, perguntar ao Neno onde tinha um pote para por o sagu, mas parei diante do corredor. Emília, havia trocado de roupas e penteava os cabelos diante de um diminuto espelho. Não sei quanto tempo fiquei ali, olhando-a. Ela é puta, disse Neno. Hã? O olhar de Emília encontrou o meu. O que você disse, pirralho? PUTA, gritou Neno. PUTA. Outro salto, quase ornamental, trouxe Emília para a sala. Neno olhou para ele, insolente. PU-TA. Ela pegou Neno pelos cabelos e socou-lhe a cara. O prato voou ao chão. PUTA, entre lágrimas, SUA PUTA. O segundo soco fez Neno sangrar. PUTA! Neno saiu correndo pelo corredor da quitanda e sumiu. Emília juntou os cacos do prato quebrado, ajeitou a banqueta e as almofadas do sofá. Dois filetes de lágrimas haviam borrado sua maquiagem. Ela abriu a geladeira, pegou uma colherada de sagu e me deu. Não tem pote, disse-me antes de sair pelo corredor da quitanda. Lá fora, na rua, um carro grande a esperava. Eu tinha 12 anos. Neno, 11. Emília, não mais que 16. Nunca mais os vi.
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Boulevard
Avaliação…
Dorival sabia o que o aguardava quando saiu da sala 1C. Desde a graduação, sabia que estava se metendo em terreno pedregoso. Filosofia? O espanto dos demais nada tinha que ver com a admiração frente ao conhecimento. Filosofia? Mas logo Filosofia, filho? O espanto de Dona Marília era medo memso. Medo de que seu filho fosse mais um desses corpos fustigados que se arrastam pelos corredores das escolas públicas. No tempo de Dona Marília não. Lá no seu tempo havia respeito. Sobrevivente dos anos dourados, quando o exercício do magistério e o exercício da medicina gozavam das mesmas glórias, ela optou por ser médica. Mas o tempo flui. A jovem Marília tornou-se a Dona Marília, mãe de Dorival e a escola degradou-se a ponto de o seu espanto ecoar durante dias pelos cômodos do antigo casarão da antiga vila operária. FILOSOFIA, Dorival? Ainda se fosse pelo diletantismo, pela aura aristocrática de flanar sobre os saberes filosóficos sem maiores pretensões talvez, já para dar aulas… Jesus Cristo, Dotival! Aulas? Se o pai fosse vivo, morreria duas vezes de desgosto. À margem dos comentários nas festas de fim de ano, Dorival graduou-se. Logo no ano seguinte, passou no concurso público e, para o desespero de Dona Marília, em março Dorival percorria os corredores da escola pública, um alvo exposto. Sua primeira aula foi um desastre. Dorival, inocente como todo professor recém formado em Filosofia, crente na epígrafe aristotélica de que “todo homem, por natureza, deseja conhecer”, naqueles primeiros quinze minutos de aula, percebeu que Aristóteles deveria, antes, ter lido Hobbes. Animais! São uns animais, dizia a professora de Matemática. Bestas! São umas bestas, dizia o professor de Química. O de História arrematava, são um bando de lazarentos. La-za-ren-tos! A sala dos professores exalava o ódio. Dorival não sabia como lidar com a ambiguidade que experimentava no translado da sala de aula para a sala dos professores. Seriam os alunos, por natureza, umas bestas? Ou, por sistemática classificação dos seus professores, teriam os alunos se convertido em bestas? Dorival passou a frequentar o recreio. Passou a circular entre os meninos e meninas que o repudiavam como um leproso. A escola havia erguido barreiras altas o suficiente para que professores e alunos fossem não mais que inimigos, cada qual no seu quadrado. Filosofia, Dorival? Ainda se fosse Matemática! Filosofia? Quem quer saber de Filosofia, hoje são todos umas bestas, uns animais. Até Dona Marília, que nunca fora professora, sabia que lá dentro da escola, o mundo estava perdido. Ela, que sequer dava bom dia ao zelador do hospital. Ela, que sequer dava bom dia às pacientes. Ela, que todos os domingos rezava pelo bem dos seus. Até ela, que nunca havia posto um pé sequer nos corredores da escolas públicas, sabia que o problema não tinha solução. Dorival sabia das dores de sua mãe ao vê-lo professor. Dorival, ao contrário dela, não sabia nada da escola, nada dos alunos, nada sobre bestas e animais. Um dia Dorival, sem esperanças, escreveu na lousa: avaliação. Os alunos, inquietos, começaram a perguntar-se, cadê a prova? Dorival, sentado sobre a mesa, balançava as pernas no ar e rodopiava o toco de giz com os dedos. Renatinha foi a primeira a fazer galhofa. Cadê as perguntas? Quanto vale a prova? Ele nem deu matéria. Depois de quinze minutos de alvoroço, Dorival voltou a escrever na lousa, logo abaixo da palavra avaliação, grafou: reprovado. REPROVADO? Tá maluco, seu bosta? Nem deu prova. Nem deu matéria. Nem nada… Dorival levantou-se e saiu da sala. Dias depois, quando a professora eventual apareceu, os alunos souberam que era Dorival quem havia sido reprovado. Não aguentou o tranco, disse Renatinha com um sorriso satânico. Bunda-mole, disse o professor de História. Dona Marília até hoje chora o sumiço do filho Dorival. Seu Manel, o senhorzinho que vendia salgados na saída da escola, depois de uma visita aos parentes, lá pelas bandas de Mucupira, jura de pés juntos que viu Dorival trabalhando no guichê da rodoviária: no crahá dizia Sócrates, mas tenho certeza que era o Dorival.
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Mirela…
[Conteúdo impróprio para menores de idade e maiores de pudor]
Mirela tinha quinze anos e era minha prima. Prima de consideração, posto que era filha da irmã de Dona Eufrida, a mulher de meu tio. Numa dessas tardes de verão, Mirela entrou no meu quarto. Aproximou-se de mim e sem cerimônias perguntou-me o que eu fazia com a minha maquininha de fazer xixi. Disse-lhe o que qualquer menino de treze anos como eu diria, o óbvio, xixi. Ela colocou sua mão para dentro do meu short e segurou com seus dedos delicados o, como ela mesma batizou, meninão. Com movimentos delicados, Mirela ensinou-me a punheta. Em seguida, jogando-me na cama, com seus lábios, língua e saliva, mostrou-me o que era um boquete. Vendo nos meus espasmos musculares a eminência da minha primeira ejaculação, Mirela sentou-se sobre mim e ensinou-me a cópula. Senti seu interior quente e molhado e, por fim, aprendi o que era gozar. Vinte e cinco anos depois, lá estava ela descendo as escadas do casarão de Dona Eufrida, que deus a tenha. Meu tio também passara dessa para a melhor e Mirela herdara aquela propriedade. O tempo lhe fora gentil. Ao contrário de todas as demais mulheres da família, cuja a lida doméstica e os cuidados com os rebentos lhes arebentaram, Mirela mantinha-se um espetáculo. Eu casei-me com Josefa, mulher casta, fiel aos ditames da Santa Igreja. Me fora prometida por seu Antenor, compadre de meu pai. Com Josefa tive três filhos. As gêmeas Maria Eduarda e Eduarda Maria e o caçula. Josefa jamais foi mulher de fogosidades. Austera, o sexo era como dizia o cânone, crescei-vos e multiplicai-vos, mas as complicações uterinas com a vinda do caçula nos desobrigou a povoar esta terra de Noé. As memórias inundavam-me a cabeça enquanto observava Mirela descendo as escadas com Miguel. Miguel! MIGUEL! Meu caçula vinha ao seu lado com um olhar de garoto que abusou do melado. Um olhar familiar. Mirela notou a minha presença e lançou-me um daqueles seus olhares de mulher fatal. Esgueirei-me até a cozinha, em busca de algo mais forte que o ponche de frutas que centenária vó Dinda fazia questão de entuchar em todos. Vasculhava o armário de bebidas quando vi Miguel vindo ao meu encontro. Gelei. Tomei um gole da primeira garrafa que encontrei. O líquido desceu queimando minhas entranhas. Miguel disse: papai, aprendi umas coisas muito legais com a Tia Mirela, ela me disse que você gostaria de saber. Perdi o ar. Havia duas coisas em que Mirela era expert: sexo e me fazer passar vergonha. Certa vez, na casa da Senhora Concheta, Mirela me fez crer que a filha da Senhora Concheta me desejava. Me falou das confidências que a meninota a tinha feito, dos seus desejos por mim. Eu já contava com meus dezesseis anos e, convicto que a guria me desejava, lancei-me em galanteios. Jussara, que já estava noiva de um fidalgo qualquer, fato que eu desconhecia por completo, esculachou-me e levou o caso aos meus pais. Maldita Mirela! Sexo e me fazer passar vergonha, seus esportes preferidos. Comigo e Miguel, juntou os dois, iniciara o menino nas artes da felação e, ainda por cima, recomendou-lhe que me contasse. Maldita Mirela. Miguel, meu filho, falamos depois. Depois não, aos doze anos, Miguel era a minha cópia física, mas seu gênio era inversamente proporcional à minha calmaria. Não se daria por vencido, ainda mais que tinha o trunfo de ter-me visto bebendo às escondidas. Vamos papai, vamos lá fora. Jesus! Josefa nos olhava desconfiada. Fez sinal para que voltássemos à festa. Miguel sorria quase enebriado. Mirela flanava por entre os familiares. No quintal, Miguel disse-me: preste atenção, papai. Nada nesta mão, nada nesta outra mão e… tcharam! Uma moeda. Uma moeda de 50 centavos, daquelas com o Duque de Sei Lá Onde. Senti as pernas fraquejarem. O que sua Tia te ensinou? Mágica, papai. Mágica! Josefa pegou-nos em flagrante. Suspendeu Miguel pela orelha esquerda enquanto me lançava seu olhar de reitora do convento. Passamos os dois para o salão. Miguel logo foi-se divertir com os primos. Eu passei o restante da noite colado em Josefa. Quando a orquestra já se preparava para tocar uma polca daquelas que expulsam até demônios, éramos eu e Josefa o último casal a se despedir. Josefa e Mirela se cumprimentaram como a falsidade que manda o protocolo. A mim, Mirela disse-me ao pé do ouvido. Teu guri já bem sabia o que fazer com o meninão dele, certifiquei-me que sim, logo, restou-me ensinar-lhe umas mágicas. No banco detrás do DKW, Maria Eduarda e Eduarda Maria dormiam. Miguel, com seu sorriso de Monalisa, entretinha-se com a moeda mágica. Josefa, ao meu lado, contava algo sobre alguma intriga entre os parentes de Ourinhos por conta de dinheiro. Minha mente rodopiava. Antes de colocar Miguel para dormir, tomei coragem e perguntei-lhe sem rodeios: Tia Mirela pegou no seu meninão? Meninão, questionou-me. Sim, sua maquininha de fazer xixi. Miguel fez uma cara horrorizada e correu para a saia da mãe. Maldita Mirela! Entre os seus esportes preferidos, o sexo e me fazer passar vergonha.
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Coisa de meninos…
Eram os últimos dias de dois mil e dezessete. Aline conseguiu um horário com a manicure e lá fomos nós. Como todo bom marido, fiquei à espera na saleta destinada aos bons maridos. Saquei meu e-reader e pus-me a ler minha leitura do momento, O Lobo da Estepe. Ao meu lado, um garoto de seus oito ou nove anos. É que a saleta dos bons maridos também é a saleta dos bons filhos. Eu com o meu e-reader, ele com o seu tablet. Nos olhamos por poucos segundos, tempo suficiente para entendermos que cada qual tinha o seu brinquedo e, portanto, nenhuma interação social era necessária. Como bom filósofo que tento ser, ao estilo Sartre, fiquei com um olho na tela do e-reader e outro no ambiente. São nesses espaços – além do banho, óbvio – que surgem boas ideias para crônicas. O garoto, mais comprometido com o seu tablet que eu com o meu e-reader, ignorava o palavrório da mulherada que entrava e saia. Algumas delas, enquanto aguardavam a máquina de cartões de crédito processar suas despesas, davam rápidas olhadas nas duas criaturas da sala de espera. Ah, os males da tecnologia, olha só esses dois, de caras coladas nas telas do seus dispositivos eletrônicos, pensou a moça de cabelos escovados. Uma outra, cujas as madeixas estavam protegidas por um saco plástico – chovia lá fora –, cogitou que fossemos, eu e ele, pai e filho. A secretária, aquela que tudo sabe, fez que não com a cabeça. Santo Facebook, pensou o cabeleireiro, é o que salva esses pobres apêndices de hoje em dia. Antigamente eram aquelas revistas de variedade. Todo bom salão – ou consultório médico – tinha sua pilha de revistas. Os acompanhantes podiam matar o tempo folheando uma Contigo de Março de Mil Novecentos e Setenta e Três em pleno Mil Novecentos e Noventa e Nove. Mas não para nós, eu e o garoto estávamos aparados pela tecnologia, mas distantes do vazio das redes sociais. O Lobo da Estepe comigo, um jogo de ligar pontos com ele – sim, eu consegui espiar o que se passava na tela do brinquedo dele, coisa de meninos. De súbito, uma senhora, espalhafatosa, adentrou ao salão. Vinha com duas sacolas e uma voz de trombeta do apocalipse. Meninas, trouxe bolo! Dois! E anunciando a boa nova, esgueirou-se salão adentro. Tanto eu como o garoto paramos nossas atividades para contemplar a anciã chique-no-último. Dois bolos, eu tenho certeza que o garoto pensou o mesmo que eu: um para cada! Coisa de meninos. Quando o som da voz da velha senhora se perdeu, nossos olhares se cruzaram por mais um ou dois segundos. Com um leve arquear de sobrancelha esquerda, o semblante do pirralho deixou claro que ele também havia espiado a tela do meu brinquedo, cheia de letras monocromáticas e sem graça. Antes que eu pudesse lançar-lhe um olhar de desdém, a velha senhora reapareceu. É um de laranja e o outro é com aquela cobertura branca que vocês gostam. Um pra hoje e outro para amanhã, instruiu a dama dos bolos. E já sabem, né? O coro de meninas respondeu em uníssono: nenhum pedaço para corinthianos. O garoto congelou ao ouvir a réplica da velha senhora. Se der um pedaço do meu bolo para corinthianos, eu mato na paulada. O garoto entrevou-se na sua tela. Eu, que de futebol entendo apenas que a bola é redonda, já estava prestes a delatar o corinthianinho à minha direita quando a velha senhora parou diante de mim e, com voz de professora da quinta séria que tinha sido, questionou-me: você é corinthiano? Apenas pude balbuciar um não. Se for, eu mato na paulada, advertiu a dama dos bolos. Apenas pude balbuciar um segundo não. Então, virando-se para a secretária, aquela que tudo vê, completou: pode dar um pedaço pro moço. A senhora, com seu garbo e elegância, desapareceu pela mesma porta que chegara. Apenas o rastro do seu perfume Rastro e as risadas das meninas do salão permaneceram. O garoto havia escapulido também, aproveitou-se do meu interlúdio com a madame e foi-se para debaixo da saia da mãe, o sacripanta. Coisa de meninos…
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Sex Shop
Apesar dos pesares, esta é uma história de amor. Filomena levantou-se da cama decidida. Após o habitual café, seguiu para o centro da cidade. Subiu as escadas do Malagueta’s Sex Shop e foi direto ao balcão. Bom dia, disse a atendente cujas feições flertavam com algo entre o David Bowie e o Waldick Soriano. Em que posso ajudar? Filomena sustentou o olhar, apesar da vergonha que lhe consumia por dentro. Quero um consolo. A atendente sorriu-lhe e fazendo um gesto com o dedo indicador, sumiu por detrás de uma cortina vermelha logo atrás do balcão. Filomena, muito discretamente, deixou os olhos correr pelo ambiente. Uma fauna de artefatos eróticos cujas funções escapavam ao saber cotidiano da viúva-beata de cinquenta e oito anos. Adamastor, seu marido, morrera dez anos antes. Infarto fulminante. Desde então, Filomena guardava luto, Jamais se aventurara a encontrar outro amor, sabia desde pequena que o casamento, ao contrário do que dizem por ai, não acaba quando a morte nos separa. Na igreja de Filomena, o casamento é para toda a eternidade e quando a dama de negro a viesse visitar, poderia então se reencontrar com Adamastor, seu marido. Adamastor era um homem rústico, mas não era rude. Tratava Filomena com a justeza que um homem deve a sua companheira. Apesar da criação religiosa na igreja dos últimos dias, Adamastor não era lá muito católico. Às escondidas dos olhos da ala, bebia sua pinga de alambique, fumava seu cigarrinho de palha e nas noites da juventude, sapecava Dona Filomena em tórridos lençóis. Casaram-se ainda novos, ele com seus dezoito anos, ela com seus dezessete. Prometidos uma ao outro pela fidelidade dos pais-beatos, aprenderam a se amar e a desrespeitar certas regras das doutrinas. Numa fria manhã de inverno, Adamastor queixou-se de uma dor no peito e antes que Filomena pudesse levantar para lhe buscar um copo d’água, Adamastor faleceu. Aqui está, disse a atendente com sua voz cujo timbre lembrava algo entre uma seriema no cio e uma maritaca em tardes de verão. Despertada do mundo de lembranças, Filomena viu diante de si um arsenal de peças anatômicas que a fez corar. Dos mais simples e pequenos aos enormes e motorizados, havia de tudo. Com vibração intensa, com texturas agressivas, com luzes, som e até Wi-Fi! A atendente, percebendo que o espanto da senhora que titubeava se poderia tocar um deles, antecipou-se e colocou nas mãos de Filomena um Mastodonte 2000 Plus. Jesus! Filomena sentiu que o rosto corara mais ainda. Enquanto a atendente descrevia as características técnicas do artefato, como naquela música da Maria Alcina, Filomena sentiu um calor na bacurinha. Wi-Fi? Sim, Wi-Fi? Mas e para que serve o Wi-Fi? A senhora pode sincronizar a vibração com a batida do Spotify ou, ainda, com os a exibição de filmes picantes no site do fabricante, esclareceu a atendente com um piscadela de cumplicidade, completou: e ainda pode usar como roteador! Roteador? A cabeça de Filomena dava voltas com todas as vozes das beatas enaltecendo seu luto. No fundo, ainda que em vida Adamastor a tivesse mostrado que as doutrinas podiam ser deixadas de lado, após a sua morte, o medo característico das fés a fazia titubear. Será pecado? Será que lá do além, Adamastor a julgaria? Dez anos de luto-castidade e a saudade de um chamego do seu Adamastor a fizeram resoluta naquela manhã e no seu ombro esquerdo, o diabinho lhe dizia, leva mulher. Filomena sequer olhou para o ombro direito para ver se havia anjo a lhe dissuadir daquele disparate. Passou o cartão, pegou o embrulho e voltou para casa com um sorriso de Monalisa. O resto do dia foi um dia normal, de viúva-dona-de-casa. A noite, depois de um longo banho, tirou o telefone do gancho, apagou as luzes da sacada e colocou na vitrola um disco do Barry White. Após uma corrida de olhos no manual de instruções, Filomena deitou-se com seu Mastodonte 2000 Plus. Ambrósia acordou assustada, virou para o lado e chacoalhou o marido. José, José! Escuta! O marido pigarreou e sem saber bem o que acontecia, ouviu os gemidos que vinham da casa ao lado. Ó, ah, humm.. ÓÓÓ, ahhh, huumm… Aah, Aaahh.. Ahhdamastoooooor! Na manhã seguinte, enquanto a atendente espanava o pó das prateleiras do fundo, Filomena, que lhe surgiu nas escadas, ofegante e com um sorriso cujo brilho transitava entre o sol fulgurante das tardes de fevereiro e a chama vigorosa de uma fogueira da Santa Inquisição, perguntou: como configura o tal do Wi-Fi?
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Esses humanos…
Como toda história que trata dos cantos mais recônditos desta coisinha chamada ser humano, esta é uma história de traições. Rebeca sabia que o marido, vez ou outra, se metia a besta com as sirigaitas que rodopiavam o Tênis Clube Raqueteiros. Coisa de homem, dizia sua malfadada mãe. Seu pai arrumou uma em cada cidade. É que os caixeiros viajantes, assim como os marinheiros, vivem as quenturas que emanam dos países baixos onde bem lhes couber, mas a chama eterna da jura feita na igreja, sacramentada diante do Altíssimo, pois bem, esta pertencerá sempre a mulher amada. Você é a rainha do lar, Rebeca. As outras são penas passatempos, dizia a mãe, muito mais para convencer a si mesma que sua filha. O fantasma que atormentava Rebeca nas tardes de domingo não eram os passatempos, mas um certa Constança. A pretexto de se inteirar sobre as novidades no mundo dos potes plásticos, o marido agora frequentava religiosamente reuniões dominicais. Num desses domingos, Rebeca seguiu o marido. Sentou-se no último banco, ajeitou os óculos escuros e lançou seu olhar de Mata Hari para a dupla que, à nove bancos de distância, sequer prestava atenção à retórica do vendedor de potes e vasilhas. Constança e seu marido, mais que exercitando a cobiça, estavam enamorados. As mãos dadas e o sorvete dividido entre os dois na praça fez o sangue de Rebeca ferver. Na segunda pela manhã, calma e com toda a classe que toda rainha ostenta, Rebeca comunicou ao seu marido que já sabia de tudo. Ele agora era problema dela, da vagabunda, da teúda e manteúda. Constança, a constante, que se virasse com aquele traste. Naquela mesma segunda-feira, Rebeca juntou suas roupas, pegou o carro e se meteu no asfalto, ao encontro de Nosor, o amor adolescente dos tempos da catequese e com o qual mantinha tórridos encontros ocasionais ao longo dos últimos vinte e cinco anos. Nabucodonosor, macaco velho, também tinha sua “Rebeca”. A esposa, a dona do seu sim diante do Altíssimo, a rainha do lar, aquela com quem Nosor teve seus quatro filhos, todos batizados diante do mesmo Altíssimo, também sabia que o marido, bicho homem que é, tinha suas escapadelas de marinheiro – ou caixeiro viajante, que dá na mesma. O que a esposa não sabia, posto que não foi investigar, é que os encontros bimestrais dos Seresteiros da Colina, grupo do qual Nabucão, como era conhecido entre os seus, participava, eram na realidade com constância, digo, Rebeca. No quilômetro trezentos e oitenta e um, na suíte vinte e sete do Motel Meia Nove, Rebeca e Nosor juraram, imersos numa Jacuzzi de asseio duvidoso, quebrar suas juras de amor para com seus cônjuges (e para com o Altíssimo, obviamente) e foram viver, agora, seu verdadeiro amor em uma choupana na remota Lagoinha, escolha de Beca, como Nosor, Nabucão, a chamava. Dizem que o ex-marido pediu baixa do Tênis Clube Raqueteiros e hoje em dia dedica-se a organizar reuniões dominicais para falar dos milagres do Ômega Três. A ex-mulher, dessa nada se soube. Constança casou-se com um húngaro bem de vida e desfruta dos prazeres do Velho Mundo. Nosor acha que Beca anda de flertes com um antigo amor dos tempos da faculdade, que calhou de ser oriundo da remota Lagoinha e gerencia a única farmácia da pequena Lagoinha. Rebeca tem certeza que Nosor, à escusa de visitar bimestralmente o padrinho doente, está de caso com a siliconada recepcionista do asilo. Do alto, observando todo esse imbróglio, o Altíssimo se pergunta: onde foi que eu errei?
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Chega chegando…
Deu-lhe um tabefe no meio das fuças que o fez girar, como nos desenhos animados, duas vezes sobre os calcanhares. A técnica infalível que o amigo Gouveia o havia ensinado mostrou-se duplamente desastrosa: expulsou-o do Lajota’s e trincou-lhe o molar esquerdo. Mas, não foi essa a história contada na cadeira da dentista. Ali, enfeitiçado pelos olhos de esmeralda da jovem Marissol, atribuiu a causa do seu infortúnio odontológico a uma bela raquetada. Sabemos de longa data que Adolfo jamais pôs os pés numa quadra de tênis e que o mesmo sequer saberia diferenciar uma bola de pingue-pongue de uma bola de gude. Aquela era mais uma oportunidade para o exercício da sedução, arte na qual Adolfo, cinquenta e dois anos, divorciado há três, era aprendiz. Quando jovem, Adolfo viveu isolado da humanidade em numa estação de estudos climáticos na Antártida. Mentira! Mas era assim que Adolfo justificava a ausência de suas narrativas apimentadas sobre aventuras romântico-selvagens de um adolescente na efervescência dos hormônios. Logo na juventude, aos 20 anos, Adolfo casou-se com Juliana, a mulher que sorveu-lhe à canudinho trinta e dois anos da vida e, sem delongas, o abandonou dois dias antes do cruzeiro de bodas de sei lá o quê. Deixando de lado detalhes de sua infância, pois das criancinhas é o reino dos céus, Adolfo foi, talvez, o cara mais sem sal da face da Terra. E assim estávamos, quando Gouveia apareceu na sua vida. Era uma tarde de outono e Adolfo fazia o seu jogging de todas as tardes na pista do Campolim. Outono? Me parece que era verão… Pois bem, pouco importa, afinal Adolfo inventou essa de jogging apenas para ver as coxas torneadas em calças legging e os seios apertados em tops de lycra. Corria exatos vinte metros e parava para longos alongamentos de rabo de olho que radiografavam os corpos fitness de meninas que bem poderiam ser suas filhas. Havia também as coroas. Tiazonas da mesma idade que Adolfo, com corpos recauchutados nas oficinas de crossfit que deixavam algumas novinhas no chinelo. Mas Adolfo sabia que, nessa idade e com aquelas curvas, suas contemporâneas eram doutoradas na arte de destruir corações incautos de adolescentes cinquentões como ele, coisa para a qual as jovenzinhas fitness, para o bem da espécie humana, ainda eram meras estagiárias. Chega chegando, disse o Gouveia. Adolfo não soube se era com ele. É, maluco, você! Chega chegando. Essa coisa de galanteios é do tempo do zagaia e já não funcionava nem com o zagaia – que, diga-se de passagem, nem era uma pessoa. Apesar do olhar lascivo e pinta de tarado, Adolfo era fã do Roberto, logo amante à moda antiga. Chegava nas moçoilas com galanteios e flores arrancadas dos canteiros do parque. Inspirava-se no J. G. de Araújo Jorge para recitar rimas românticas com a finesse de um Clark Gable. Tudo errado! Chega chegando, disse de novo o Gouveia, coisa que Adolfo interpretou como “mostra a chave da BMW e chama pra tomar uma água de côco na jacuzzi do apê em Maresias”. A morena de corpo escultural olhou para a chave do BMW ano 1998 com desdém, deu dez passos e, virando-se para Adolfo, piscou-lhe um olho enquanto um Jaguar F-só-deus-sabe-qual piscava as setas em resposta ao controle remoto. Porra, Adolfo! Essas minas tem carros desde os quatorze anos. Tu tem que chegar chegando! Saca só. Gouveia acercou-se de uma ruiva que Adolfo jurava que havia escorregado do Olimpo para aTerra por descuido dos deuses. De inicio ela revirou os olhos, mas Gouveia aproximou-se e sussurrou-lhe uma meia dúzia de palavras ao pé do ouvido. O sorriso que se seguiu foi uma das coisas mais espantosas para Adolfo. Ambos caminharam para o Fiat Uno 1.5 Turbo ano 1987 do Gouveia e sumiram pelas curvas da Raposo Tavares. Na tarde seguinte, Adolfo esquadrinhou toda a pista de caminhada do parque Campolim em busca do Gouveia. Nada. Encontrou-o três dias depois, inadvertidamente, no Lajota’s. Qual é, Gouveia? Como é que se faz? Chega chegando, Adolfo! Depois de algumas doses de Chivas, Gouveia deixou escapar um ou dois segredos. Adolfo, embebido de animo e uísque, partiu para a Louraça Belzebu feito um Exocet, e o resultado, já sabemos. Embriagado, desta vez, com o absinto daqueles olhos verdes, Adolfo respirou fundo. Enquanto Marissol dizia-lhe sobre os detalhes do tratamento de canal que seria necessário para restaurar o molar de Adolfo, este mentalizou as palavras do grande Gouveia: chega chegando. Ao longe, trombetas celestiais puderam se ouvir. Quando Marissol se debruçou para amarrar o babador no pescoço de Adolfo, este sussurrou-lhe uma meia dúzia de palavras ao pé do ouvido. Quatro e quinze da manhã, Deoclécio, porteiro do Edifício Sol e Mar, em Maresias, recebe a décima ligação de moradores incomodados com os ruídos selvagens vindos do apartamento do Adolfo. Pensou em discar o 608, mas conhecia Adolfo desde o seu primeiro verão como porteiro do edifício. Deoclécio tirou o interfone do gancho e se ajeitou para um doce cochilo.
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